segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Reserva de chuvas

Na escola, zombaram de minha pronúncia torta,
ameaçaram-me com canivetes no recreio.
Assisti a covardia crescer, aquietado no fundo da sala.
Durante anos, contive o veludo áspero da pata,
a soleira da pata, a vogal da pata.
Preparei a vingança pelas palavras.

Roubei o dízimo, enrolei o papel seda
dos versículos para fumar tuas promessas.
Pisei em teu rosto com a luz suja de um livro.
A neblina me perseguiu enfurecida
e não viu que estava nela.

Peço desculpas como uma criança,
as mãos algemadas
na inocência nociva.

Como enganar os gestos?
Minha vontade de abraçar
esgana.

Todos meus erros descendem do excesso,
não da penúria.

Deus, será que tua água
vem da sede do homem?
Será que nossa sede é potável?

As diferenças nos assemelham,
o único vizinho do mar é o abismo.
Estou extremamente perto
e morro distante.
Mora numa morte emprestada.

Cerca-me da cegueira,
tal relâmpago que acende o bosque
para as aves pousarem nele.

Cerca-me da cegueira,
desapegando do que não vi.

Cerca-me da cegueira,
a fidelidade do vento é testada no naufrágio.

Cerca-me da cegueira,
como uma fruta apanhada com os dentes.

Cega-me.
Meu desespero fracassou
ao passar a noite em claro.
Fez amizade com as sombras.



Fabrício Carpinejar
O poema acima foi extraído do livro "Biografia de uma árvore", Escrituras Editora - São Paulo, 2002, pág. 57.

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