terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O armário

É um armário largo, esculpido; o carvalho escuro,
Muito antigo, tem este ar bondoso das velhas gentes;
O armário está aberto, e sua sombra derrama obscuro
Como onda de vinho velho, perfumes atraentes;

Está cheio, é uma bagunça de velhas velharias,
De roupas cheirosas e amarelas, de trapos
De mulheres ou crianças, desbotadas rendarias,
Chales da avó pintados com grifos, guardanapos;

— É nele que se acharia medalhões, cachos
De cabelos brancos ou loiros, retratos, penachos
Cujo perfume se mistura a perfumes de frutas.

— Ó armário dos velhos tempos, tu sabes de muitas lutas,
E querias contar histórias, e ranges feito gavetas
Quando se abrem lentamente tuas grandes portas pretas.



Arthur Rimbaud

Raivas de Césares

O homem pálido, ao longo de canteiros floridos,
Caminha, de vestido negro e um charuto nos dentes:
O homem pálido lembra das flores de seu castelo banido
— E às vezes seu olho sem brilho tem olhares ardentes...

Pois o Imperador está bêbado de seus vinte anos de orgia!
Ele havia dito: "Vou assoprar a Liberdade
Muito delicadamente, como vela de vigia!"
A Liberdade renasce! Ele se sente quebrado!

Ele está preso. — Oh! que nome em seus lábios mudos
Treme? Que remorso implacável o morde?
Não saberemos. O Imperador tem o olho morto.

Ele pensa talvez no Compadre de óculos graúdos...
— E olha fugir de seu charuto que arde,
Como nas noites de seu Palácio, um fino vapor azul e torto.

Para... Ela



Arthur Rimbaud

Romance

I

A gente não é sério com dezessete anos.
— Uma bela noite, longe dos chopes e do anseio
Dos cafés barulhentos de lustres soberanos
— Vamos sob as tílias, verdes do passeio.

As tílias cheiram bem nas boas noites de junho!
O ar é às vezes tão doce que fechamos os olhos;
A cidade não está longe — o vento é testemunho —
Há perfumes de vinhedo e perfumes de cerveja...


II

— Eis que percebemos um pano pequenino
Azul-escuro, ladeado por um pequeno galho,
Com uma estrelinha má, sumindo
Aos doces arrepios, branca como orvalho...

Noite de junho! Dezessete anos! Embriagados.
A seiva é champanhe e lhe sobe à cabeça...
Divagamos; sentimos um beijo nos lábios
Que palpita lá, feito um bichano...


III

O coração louco vagueia como num romance,
— Quando, na luz de um pálido lampião,
Passa uma senhorita com encantos de relance,
Na sombra do colarinho temível do seu pai...

E, já que ela lhe acha imensamente ingênuo
Enquanto deixa trotar as suas botinas,
Ela se vira, alerta com um movimento tênue...
— Nos teus lábios então morrem as cavatinas...


IV

Você está apaixonado. Tomado até o mês de agosto.
Você está apaixonado. Seus poemas a fazem rir.
Todos os seus amigos fogem, você é de mau gosto.
— E a adorada, uma noite, concedeu-lhe uma carta!...

— Esta noite... — você entra nos cafés soberanos,
Você pede limonada ou um chope cheio...
— A gente não é sério com dezessete anos
E quando tem as tílias verdes do passeio.



Arthur Rimbaud

Vogais

A negro, E branco, I vermelho, U verde, O Azul: vogais,
Direi algum dia vossos nascimentos ocultos:
A, negro espartilho peludo das moscas tumultos
Rondando fedores cruéis demais,

Golfos de sombra; E, candura de vapor e de tenda,
Lanças de geleiras altivas, reis brancos, tremor de umbelas;
I, púrpuras, sangue cuspido, riso dos lábios belos
Na cólera ou na embriaguez oferenda;

U, ciclos, vibrações divinas do verde mar,
Paz dos pastos semeados de animais, paz das rugas
Que a alquimia imprime na fronte a estudar;

O supremo clarim pleno de estranhos agudos,
Silêncios cruzados por anjos e mundos:
— Ô, o ômega, raio violeta de Seus Olhos!


Arthur Rimbaud

Cabeça de fauno

Na folhagem, estojo verde de ouro manchado,
Na folhagem incerta e florida
De esplêndidas flores onde o beijo dorme,
Vivo e rasgado o precioso bordado,

Um fauno assustado mostra os seus olhos
E morde as flores vermelhas com seus dentes brancos.
Moreno e sangrento como um vinho velho
O seu lábio estoura em risos sob os galhos.

E quando fugiu — feito um esquilo —
O seu riso treme ainda em cada folha,
E vê-se amedrontado por um grilo
O Beijo de ouro do Bosque, que se recolhe.


Arthur Rimbaud

O riacho de Cassis

O riacho de Cassis rola ignorado
Em vales estranhos:
De cem corvos lhe acompanha o brado
Real e boa voz de anjos
Com os grandes movimentos dos pinheirais
Quando voam ventos demais.

Tudo rola com mistérios revoltantes
De campos antigos;
De torres visitadas, de parques importantes:
E nestas margens que se ouvem
As paixões mortas de cavaleiros errantes:
Mas que saudável é o vento!

Que o pedestre veja estas vias:
Irá mais corajoso.
Soldados das florestas que o Senhor envia,
Queridos corvos deliciosos!
Façam fugir daqui o camponês esperto
Que brinda de um velho coto.



Maio 1872.
Arthur Rimbaud

Bruxelas

Julho. Alameda do Regente.

Canteiros de amarantos até
O agradável palácio de Júpiter
— Sei que és Tu que, neste lugar,
Misturas teu Azul quase de Saara!

Depois, como rosa e pinheiro do sol
E cipó têm aqui seus jogos confinados,
Gaiola da pequena viúva...
Que variados
Bandos de pássaros, ô ia io, ia, oi!

Calmas casas, antigas paixões!
Quiosque da Louca por afeição.
Após as bundas das roseiras, balcão
Sombrio e muito baixo da Julieta.

— A Julieta, isto lembra a Henriqueta,
Encantadora estação do trem
No coração do monte, como no fundo de um pomar
Onde mil diabos azuis dançam no ar!

Banco verde, onde canta ao paraíso de tormenta
Na guitarra, a branca irlandesa.
Então da sala de jantar guianesa
Conversas das crianças e das gaiolas.

Janelas do duque que me faz pensar
No veneno dos caracóis e da madeira
Que dorme aqui ao sol. Depois
E belo demais! demais! Vamos guardar silêncio.

Alameda sem movimento nem comércio,
Muda, todo drama e toda comédia,
Reunião das cenas infinita,
Eu te conheço e te admiro em silêncio.

No número 25 da alameda do Regente, em Bruxelas, havia o Palacete
dos Duques de Aremberg. 0 "agradável palácio de Júpiter"
deve ser o Palácio Real ou o Palácio das Academias.


Arthur Rimbaud

Minhas pequenas namoradas

Um líquido molhado lava
O céu cor de uvas:
Sob a árvore broto que baba,
Seus guarda-chuvas

Brancos de luas particulares
Das marcas airosas,
Choquem as suas joelheiras,
Minhas feiosas!

Nos amávamos naquela época
Feiosa azul!
Comíamos ovos quentes
E capim do sul!

Uma noite me chamaste poeta,
Loira feia:
Vem aqui receber o chicote
De mão cheia;

Vomitei tua brilhantina
Feiosa preta;
Você cortaria minha mandolina
Com tua careta.

Puá! minha saliva ressecada,
Ruiva feiosa
Ainda infecciona a sacada
Do teu seio rosa!

Ó minhas pequenas namoradas,
Como vos odeio!
Coloquem algum recheio
Em vosso seio!

Pisoteiem os meus restos
De sentimento;
Opa! Sejam bailarinas
Por um momento!...

Suas omoplatas desparafusam,
Ó meus amores!
Uma estrela a seus rins mancos
Girem horrores!

E é pra estas ninharias
Que tenho rimado!
Queria quebrar suas bacias
Por terem amado!

Monte insípido de estrelas vadias
Limpem os cantos!
Vocês morrerão em Deus, chapadas
De vis encantos!

Sob as luas particulares
Das marcas airosas,
Choquem as suas joelheiras,
Minhas feiosas!



Arthur Rimbaud

"Chove, de manso, na cidade"

Chora em meu coração
como chove lá fora.
Porque esta lassidão
me invade o coração?

Oh! ruído bom da chuva
no chão e nos telhados!
Para uma alma viúva,
oh! o canto da chuva!

E chora sem razão
meu coração amargo.
Algum desgosto? - Não!
É um pranto sem razão.

E essa é a maior dor,
não saber bem por que,
sem ódio sem amor,
eu sinto tanta dor.



Arthur Rimbaud

Uma Estadia no Inferno

Antigamente, se bem me lembro, a minha vida era um festim, onde se abriam todos os corações, corriam todos os vinhos. Uma noite, sentei a Beleza no meu colo. - E a achei amarga. - E a xinguei.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó bruxas, ó miséria, ó ódio, meu tesouro foi confiado a vocês!
Consegui apagar do meu espírito toda a esperança humana. Para estrangular toda alegria, dei o bote surdo da fera.
Chamei os carrascos para, morrendo, morder a coronha de seus fuzis. Chamei os flagelos para sufocar-me com a areia, o sangue. A desgraça foi meu Deus. Deitei na lama. Sequei no ar do crime. E preguei boas peças à loucura.
E a primavera me trouxe o medonho riso do idiota.
E ultimamente, estando quase ao ponto de dar a minha última nota falsa!, pensei procurar a chave do antigo festim, onde reencontrarei talvez o apetite.
A caridade é esta chave. - Esta inspiração prova que sonhei.
"Você continuará hiena, etc...", exclama o demônio que me coroou com tão amáveis papoulas. "Ganhe a morte com todos teus apetites, e teu egoísmo e todos os pecados capitais."
Ah! peguei disto demais: - Mas, meu caro Satanás, vos conjuro, uma pupila menos irritada! e aguardando algumas pequenas covardias atrasadas, vós que amais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, vos destaco estas horrendas folhas do meu carnê de danado.


Arthur Rimbaud

PRIMEIRA TARDE

Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela
Maldosamente, perto, perto.

Quase desnuda, na cadeira,
Cruzava as mãos, e os pequeninos
Pés esfregava na madeira
Do chão, libertos finos, finos.

- Eu viapálido, indeciso,
Um raiozinho em seu gazeio
Borboletear em seu sorriso
- Mosca na rosa - e no seu seio.

- Beijei-lhe então os tornozelos.
Deu ela um riso natural
Que se esfolhouem ritornelos,
Um belo riso de cristal.

Depressa, os pés na camisola
Logo escondeu: "Queres parar!"
Primeira audácia que se implora
E o riso finge castigar!

Sinto-lhe os olhos palpitantes
Sob os meus lábios. Sem demora,
Num de seus gestos petulantes,
Volta a cabeça:"Ora, esta agora!..."

"Escuta aqui o que vou dizer-te..."
Mas eu lhe aplico junto ao seio
Um beijo enorme, que a diverte
Fazendo-a rir agora em cheio...

- Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela
Maldosamente, perto, perto.



Arthur Rimbaud
Tradutor:Ivo Barroso

ORAÇÃO DA TARDE

Vivo sentado como um anjo no barbeiro,
Empunhando um caneco ornado a caneluras;
Hipogástrio e pescoço arcados, um grosseiro
Cachimbo o espaço a inflar de tênues urdiduras.

Qual de um velho pombal a cálida esterqueira,
Mil sonhos dentro de mim são brandas queimaduras.
E o triste coração às vezes é um sobreiro
Sangrando de ouro escuro e jovem nas nervuras.

Afogo com cuidado os sonhos, e depois
De ter bebido uns trinta ou bem quarenta chopes,
Oculto, satisfaço o meu aperto amargo:

Doce como o Senhor do cedro e dos hissopes,
Eu mijo para os céus cinzentos, alto e lardo,
Com a plena aprovação dos curvos girassóis.



Arthur Rimbaud
Tradutor:Ivo Barroso

Prece

A minha irmã Luísa Vanaen de Voninghem: - a sua coifa azul
virada ao mar do Norte. - Aos náufragos.
A minha irmã Leónia Aubois d'Asbhy. Baou - a erva de estio
borbulhante e fedente. À febre das mães e dos filhos.
A Lulu - demónio - que mantém um gosto pelas oratórias do
tempo das Amigas e pela sua educação incompleta. Para homens! A
madame***.
Ao adolescente que fui. A esse santo velho, eremita ou missão.
Ao espírito dos pobres. E a um bem alto claro.
E a todo o culto em cada lugar de culto memorial e em contingências
tais que nos submetamos, por aspiração passageira ou vício sério.
Esta noite, na Circeto dos morros gelados, oleosa como o peixe,
e iluminada como os dez meses da noite vermelha - ( seu coração
ambâr e spunk ), - para a minha oração silenciosa e única como
estas regiões da noite, e precedendo bravuras mais violentas do que
este caos polar.
A qualquer preço e sob quaisquer céus, mesmo a viagem metafísica-
Mas não agora.



Jean Arthur Rimbaud, in "Iluminações, Uma Cerveja no Inferno"
Tradução de Mário Cesariny
Que são para nós, meu coração, leitos de sangue
E de brasa, mil homicídios, e os longos gritos
De raiva, soluços de inferno arrasando
Toda a ordem; e o Aquilão sobre os destroços;

E toda a vingança? Nada!... Agora mais
A queremos! Senados, príncípes, industriais:
Pereçam! Poder, justiça, história: a baixo!
É nosso. O sangue! o sangue! a chama d'ouro!

Todo para a guerra, a vingança, os terrores,
O meu espírito! Viremos na calúnia: Passem,
Repúblicas deste mundo! Imperadores,
Regimentos, colonos, povos, basta!

Quem revolveria a fúria revolta de fogo,
A não ser nós, e aqueles que cremos irmãos?
A nós será de agrado, romanescos amigos:
Nunca trabalharemos, oh vagas de fogo!

Desapareçam, Europa, Ásia, América,
Pela nossa marcha vingadora ocupados,
Cidades, campos!- Seremos esmagados!
Explodirão vulcões! O Oceano atingido...

Oh, meus amigos! - Meu coração, irmãos decerto:
Negros desconhecidos, se fossêmos! Vamos!
Oh desgraça! sinto um tremor, a velha terra,
Em mim cada vez mais vossa! a terra funde.

Não é nada; cá estou; cá estou ainda!




Arthur Rimabud

A estrela chorou rosa...

A estrela chorou rosa no coração de teus ouvidos
O infinito rolou branco de tua nuca a teus rins
O mar orvalhou ruivo em teus seios tingidos
E o homem sangrou negro nos teus flancos paladins


Arthur Rimbaud

Sensação

Pelas noites azuis de verão, irei em atalhos sob a lua,
Picotado pelos trigos, pisar a grama pequena:
Sonhador, sentirei nos pés o frescor que acena.
Deixarei o vento banhar minha cabeça nua.


Não falarei, não pensarei em nada sequer:
Mas me subirá na alma o amor soberano,
E irei longe, bem longe, feito um cigano,
Pela Natureza — feliz como se estivesse com uma mulher.




Março 1870.
Arthur Rimbaud

Manhã

Abracei a aurora de verão.


Ainda nada movia a entrada dos palácios. A água estava morta. As sombras não deixavam a estrada do bosque. Caminhei, acordando os hálitos vivos e tépidos, e as pedrarias olharam, e as asas ergueram-se sem ruído.

A primeira aventura foi, no caminho já pleno de frescos e lívidos clarões, uma flor que me disse o seu nome.

Ri-me para a wasserfall loura que se encaracolou através dos abetos: no cimo prateado estava a deusa.

Então, um a um, tirei-lhe os véus. Na alameda, agitando os braços. Através da planície, onde a denunciei ao galo. Ela fugia para a grande cidade, entre as torres e as cúpulas; correndo como um mendigo sobre os cais de mármore, persegui-a.

No alto da estrada, junto a um bosque de loureiros, cobri-a com os véus desordenadamente recuperados, e senti um pouco seu imenso corpo. A manhã e o menino tombaram na orla do bosque.


Ao acordar era meio-dia.


jean-arthur rimbaud
iluminações / uma cerveja no inferno
trad. de mário cesariny
estúdios cor
1972

Aurora

Eu abracei a aurora de verão.


Nada ainda se mexia na fachada dos palácios. A água estava
morta. Acampamentos de sombras não deixavam a trilha do
bosque. Eu marchava, despertando hálitos vivos e cálidos, e as
pedrarias espiavam, e as alas se levantavam sem um som.
A primeira missão foi, num atalho já cheio de centelhas frescas
e pálidas, uma flor que me disse seu nome.
Sorri para a loira wasserfall que se descabelava através dos
pinheiros; reconheci a deusa no cimo de prata.

Então, um a um, levantei os véus. Nas alamedas, agitando os
braços. Pela planície, onde a denunciei ao galo. Na cidade grande
ela fugia entre cúpulas e campanários, e correndo como um
mendigo entre docas de mármore, eu a caçava.
No alto da trilha, perto de um bosque de louros, eu a envolvi
com seu monte de véus e senti um pouco seu corpo imenso. A
aurora e a criança caíram na beira do bosque.
Ao acordar, meio-dia.



Arthur Rimbaud in Iluminuras
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça

O adormecido do vale

É um canto de verdura onde um riacho canta
Ligando loucamente às ervas farrapos baios
Ou de prata; onde o sol, da montanha que encanta,
Reluz: é um pequeno vale que espuma de raios.

Um soldado jovem, boca aberta, cabeça nua,
E a nuca que o fresco agrião azul envolve,
Dorme; sob uma nuvem, deitado na grama crua,
Pálido no seu leito verde onde a luz chove.

Os pés nas flores, ele dorme. Sorrindo como
Sorriria uma criança doente, está no sono:
Natureza, embala-o bem quente: ele tem frio.

Os perfumes não agitam suas narinas;
Ele dorme ao sol, a mão sobre o peito
Tranqüilo. Tem dois buracos vermelhos no lado direito.



Outubro 1870.
Arthur Rimbaud

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Até as mais modernas e cosmopolitas têm
o sonho secreto de encontrar um príncipe encantado.
Como não existe um Antonio Banderas para todas,
nos conformamos com analistas de sistemas,
gerentes de marketing, engenheiros mecânicos.
Ou mecânicos de oficina mesmo, a situação não anda
fácil. Serão eles desprezíveis? Que nada. São gentis,
nos ajudam com as crianças, dão um duro danado
no trabalho e têm o maior prazer em nos levar para
jantar. São príncipes à sua maneira, e nós, cinderelas
improvisadas, dizemos sim! sim! diante do altar.
Mas, lá no fundo, a carência existencial herdada no
berço jamais será preenchida.


Martha Medeiros

MAMÃE NOEL

Sabe por que Papai Noel não existe? Porque é homem. Dá para acreditar que um homem vai se preocupar em escolher o presente de cada pessoa da família, ele que nem compra as próprias meias? Que vai carregar nas costas um saco pesadíssimo, ele que reclama até para colocar o lixo no corredor? Que toparia usar vermelho dos pés à cabeça, ele que só abandonou o marrom depois que conheceu o azul-marinho? Que andaria num trenó puxado por renas, sem ar-condicionado, direção hidráulica e air-bag? Que pagaria o mico de descer por uma chaminé para receber em troca o sorriso das criancinhas? Ele não faria isso nem pelo sorriso da Luana Piovani! Mamãe Noel, sim, existe.

Quem é a melhor amiga do Molocoton, quem sabe a diferença entre a Mulan e a Esmeralda, quem conhece o nome de todas as Chiquititas, quem merecia ser sócia-majoritária da Superfestas? Não é o bom velhinho.

Quem coloca guirlandas nas portas, velas perfumadas nos castiçais, arranjos e flores vermelhas pela casa? Quem monta a árvore de Natal, harmonizando bolas, anjos, fitas e luzinhas, e deixando tudo combinando com o sofá e os tapetes? E quem desmonta essa parafernália toda no dia 6 de janeiro?

Papai Noel ainda está de ressaca no Dia de Reis. Quem enche a geladeira de cerveja, coca-cola e champanhe? Quem providencia o peru, o arroz à grega, o sarrabulho, as castanhas, o musse de atum, as lentilhas, os guardanapinhos decorados, os cálices lavadinhos, a toalha bem passada e ainda lembra de deixar algum disco meloso à mão?

Quem lembra de dar uma lembrancinha para o zelador, o porteiro, o carteiro, o entregador de jornal, o cabeleireiro, a diarista? Quem compra o presente do amigo-secreto do escritório do Papai Noel? Deveria ser o próprio, tão magnânimo, mas ele não tem tempo para essas coisas. Anda muito requisitado como garoto-propaganda.

Enquanto Papai Noel distribui beijos e pirulitos, bem acomodado em seu trono no shopping, quem entra em todas as lojas, pesquisa todos os preços, carrega sacolas, confere listas, lembra da sogra, do sogro, dos cunhados, dos irmãos, entra no cheque especial, deixa o carro no sol e chega em casa sofrendo porque comprou os mesmos presentes do ano passado?

Por trás do protagonista desse megaevento chamado Natal existe alguém em quem todos deveriam acreditar mais.

(Dezembro de 1998).


Martha Medeiros

COISA DE ADOLESCENTE


Que insistência tola a nossa ao afirmar, cada vez que vivemos algo novo e excitante, que estamos em surto de adolescência. Isso sim é falta de maturidade. Uma amiga minha, separada, com três filhos para criar e que já não esperava mais nada da vida, me conta que está trocando e-mails com um empresário charmoso, uma surpresa que caiu do céu de uma hora pra outra. Ela me diz com todas as letras: "Estou me sentindo uma adolescente!" Numa cena de novela, outro dia, o mesmo texto: mulher recém-separada, mais de 50 anos, declarando-se apaixonada feito... feito o quê? Feito uma advogada, feito uma manicure, feito uma professora? Não, feito uma adolescente.

Qualquer pessoa que já se considere carta fora do baralho do amor, quando cruza com alguém que seguiu à risca os conselhos do "personal paquera" e recebe uma cantada, logo fica nostálgica e pensa: "ah, se fosse nos velhos tempos". Velhos tempos?? Mas que autoboicote! Certa está Bia Kuhn, psicanalista amiga minha, que diz que o inconsciente não usa calendário: os desejos de ontem seguem pulsando anarquicamente dentro da gente, com a mesma intensidade em qualquer época da vida.

Agimos como se apenas os adolescentes tivessem o direito de vibrar. Como se adrenalina correndo nas veias fosse um direito exclusivo deles. Como se homens e mulheres maduros não pudessem se divertir, não pudessem azarar sem compromisso, não pudessem se presentear com instantes de total curtição. Quem declarou que isso é um desajuste? Nós mesmos, quem mais. Está na hora de reconhecermos que entusiasmo não é coisa de adolescente: é coisa de gente grande. Vou além: é coisa de gente velha, inclusive. Coisa de adolescente é depender de ajuda financeira dos pais, passar a madrugada bebendo cerveja nas calçadas, andar sempre em turma. E até isso não é propriedade privada deles. Mas entusiasmo, vibração, paixonite?

andar sempre em turma. E até isso não é propriedade privada deles. Mas entusiasmo, vibração, paixonite? Que insistência tola a nossa ao afirmar, cada vez que vivemos algo novo e excitante, que estamos em surto de adolescência. Isso sim é falta de maturidade. Os maduros de verdade sabem que estão sujeitos a vibrações aos 30, aos 40, aos 60 anos. Alguém está morto aí? Se estiver, não responda que tenho medo de fantasma.

Sei que é difícil mudar um hábito, mas vou tentar nunca mais dizer que um entusiasmo é "coisa de adolescente". É desrespeito com os adolescentes, porque dá a entender que tudo o que lhes acontece é frugal e sem consistência. E um desrespeito conosco: se a gente pensar que já viveu tudo o que tinha pra viver, que não há mais surpresas nem vertigens pela frente, que graça terá acordar amanhã de manhã?




Martha Medeiros
Fernando Pessoa também já se sentiu abafado pela perfeição alheia, e olha que na época em que ele escreveu estes versos não havia esta overdose de revistas que há hoje, vendendo um mundo de faz-de-conta. Nesta era de exaltação de celebridades - reais e inventadas - fica difícil mesmo achar que a vida da gente tem graça. Mas, tem. Paz interior, amigos leais, nossas músicas, livros, fantasias, desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na nossa biografia. Ou será que é tão divertido passar dois dias na Ilha de Caras fotografando junto a todos os produtos dos patrocinadores? Compensa passar a vida comendo alface para ter o corpo que a profissão de modelo exige? Será tão gratificante ter um paparazzo na sua cola cada vez que você sai de casa? Estarão mesmo todos realizando um milhão de coisas interessantes enquanto só você está sentada no sofá pintando as unhas do pé? Favor não confundir uma vida sensacional com uma vida sensacionalista. As melhores festas acontecem dentro do nosso próprio apartamento!



Martha Medeiros
"Na minha vida tive dois grandes acidentes:
o bonde e meu casamento com Diego.
Diego foi o que mais doeu"


(Frida Kahlo)
"Pensaram que eu era surrealista,
mas nunca fui. Nunca pintei sonhos,
só pintei minha própria realidade".


(Frida Kahlo
in Diário)
às vezes bastava ser apenas planta, nó de tronco velho ou ramificação escondida!
não ser mulher, nem alma, nem alegria ou descontentamento
só existir, vegetalmente.


(Frida Kahlo
em El Sol y la Vida (1947)
"O espelho! Verdugo de meus dias, de minhas noites. Imagem tão traumatizante como os próprios traumatismos. Todo o tempo essa impressão de ser apontada com o dedo. 'Frida, olha-te. Frida,contempla-te'.Já não há sombra de verdade onde esconder-se, nem cova onde retirar-se, entregue à dor, para chorar em silêncio sem marcas na pele. Compreendi que cada lágrima traça um sulco no rosto, por jovem e firme que seja. Cada lágrima é uma fragmentação da vida.
Observava meu rosto, meu mínimo gesto, as dobras das colchas, seu relevo, a perspectiva dos objetos dispersos ao meu redor. Durante horas me sentia observada. Me via. Frida dentro, Frida fora, Frida em todas as partes, Frida ao infinito."






(Frida Kahlo)
'Algum tempo atrás, talvez uns dias, eu era uma moça caminhando por um mundo de cores, com formas claras e tangíveis. Tudo era misterioso e havia algo oculto; adivinhar-lhe a natureza era um jogo para mim. Se você soubesse como é terrível obter o conhecimento de repente - como um relâmpago iluminado a Terra! Agora, vivo num planeta dolorido, transparente como gelo. É como se houvesse aprendido tudo de uma vez, numa questão de segundos. Minhas amigas e colegas tornaram-se mulheres lentamente. Eu envelheci em instantes e agora tudo está embotado e plano. Sei que não há nada escondido; se houvesse, eu veria.''


(Frida Kahlo)

Poema do diário de Frida

Diego. princípio
Diego. construtor
Diego. meu bebê
Diego. meu noivo
Diego. pintor
Diego. meu amante
Diego. meu marido
Diego. meu amigo
Diego. meu pai
Diego. minha mãe
Diego. meu filho
Diego. eu
Diego. universo
Diversidade na unidade.
Porque é que lhe chamo Meu Diego?
Ele nunca foi e nem será meu.
Ele pertence a si próprio.


(Frida Kahlo)
Estão comigo as pobres coisas
que me restam.

Retratos desbotados, crucifixo
a lembrar morte e agonia,
dores de todos os dias.

Como cão sem dono,
só me visita o abandono.


(Frida Kahlo)
Este corpo quase vivo
que me impede de viver,
este corpo quase morto
que me impede de morrer.

Este corpo será meu
ou de outrem?


(Frida Kahlo)
Meu pai foi para mim um grande exemplo
de ternura,de trabalho...e acima de tudo de
compreensão de todos os meus problemas".


(Frida Kahlo)
Tarde triste de agosto
neste ermo de secretas covas
repousa um corpo sem desgosto
sofre um coração em lágrimas.

Na falsa paz da insídia do destino,
eis que me curvo:
fui apanhada nas malhas
de armaduras e gesso.

Tudo é lícito neste leito injusto
inútil chorar lágrimas não ouvidas
soluços silentes.

Somos os mortos de ontem
tranqüilos
sobreviventes.


(Frida Kahlo)

Nenhuma ferida

Nenhuma ferida
separava teus pesadelos.
Quando vagaste em meia-idade

pela selva escura, fiquei
a conversar com tuas camisas,
aprumando boinas

que afogavam os cabelos.
Tinha sete anos ao certo
e uma lua vadia disputando

corridas comigo.
Fiquei a entreter
os tecidos alinhados,

como um exército em revista,
procurando convencer
uma peça ao menos

a delatar tua deserção.
Quando vagaste em meia-idade
pela selva escura, fiquei

alimentando o aquário
das gravatas.
Pedia privacidade às traças.

Vestia tua camisa,
copiando o ritmo
dos teus traços,

a respiração copiosa,
sendo meu próprio
e definitivo pai.


Fabricio Carpinejar
“Um Terno de Pássaros ao Sul” (Escrituras, 2000)

Não te compreender
Não me fez te amar menos.

Completo as palavras cruzadas
com a ajuda dos resultados.
Leio um livro
que não é lançamento.
Roubo a cerveja separada
para a visita.
Assisto a um filme no escuro.
Telefono sem pretexto.
Os bolsos do meu casaco
formam meu diário.
Não sofro de pudor
e desfalco minha pobreza.
Esforço-me agora
para desaprender.


Fabrício Carpinejar
In: Como no Céu
A mãe orquestrava a horta.
Reservava espaço para ervas daninhas
e seu alfabeto de moscas.
Não mexia na ordem de Deus.
Louvada seja
a esmola de uma hortaliça.


Fabrício Carpinejar
in Cinco Marias

Ouvidos de orvalho

Na eternidade, ninguém se julga eterno.
Aqui, nesta estada, penso que vou durar
além dos meus anos, que terei
outra chance de reaver o que não fiz.
Se perdoar é esquecer, me espera o pior:
serei esquecido quando redimido.

Não me perdoes, Deus. Não me esqueças.
O esquecimento jamais devolve seus reféns.

A claridade não se repete. A vida estala uma única vez.

O fogo é uma noz que não se quebra com as mãos.
A voz vem do fogo, que somente cresce se arremessado.
Não há como recuar depois de arder alto.
Fui lançado cedo demais às cinzas.

Somos reacionários no trajeto de volta.
Quando estava indo ao teu encontro,
arrisquei atalhos e travessas desconhecidas.
Acreditei que poderia sair pela entrada.
Ao retornar, não improviso.

Minha conversão é pelo medo,
orando de joelhos diante do revólver,
sem volver aos lados,
na dúvida se é de brinquedo ou de verdade.

O vento faz curva. Não mexo nos bolsos,
na pasta e na consciência,
nenhum gesto brusco de guitarra,
a ciência de uma mira
e o gatilho rodando próximo
do tambor dos dentes.

Derramado em Deus, junto meu desperdício.

Vou te extraviando no ato de nomear.
Melhor seria recuar no silêncio.

Cantamos em coro como animais da escureza.
Os cílios não germinaram.
Falta plantio em nossas bocas, vegetação nas unhas,
estampas e ervas no peito.
Suplicamos graves e agudos, espasmos e espanto,
compondo esquina com a noite.

Cantar não é desabafo,
mas puxar os sinos
além do nosso peso,
acordando a cúpula de pombas.

Somos fumaça e cera,
limo e telha,
névoa e leme.
O inverno nos inventou.

Não importa se te escuto
ou se explodes meus ouvidos de orvalho:
morre aquilo que não posso conversar?

Ficarei isolado e reduzido,
uma fotografia esvaziada de datas.
Os familiares tentarão decifrar quem fui
e o que prosperou do legado.
Haverei de ser um estranho no retrato
de olhos vivos em papel velho.


Escrevo para ser reescrito.
Ando no armazém da neblina, tenso,
sob ameaça do sol.
Masco folhas, provando o ar, a terra lavada.
Depois de morto, tudo pode ser lido.

Vejo degraus até no vôo.
Tua violência é a suavidade.
Não há queda mais funda
do que não ser o escolhido,
amargar o fim da fila,
ser o que fica para depois,
o que enumera os amigos
pelos obituários de jornal,
o que enterra e se retrai no desterro,
esfacela a rosa ao toque
na palidez das pétalas e velas,
vistoriando cada ruga
e infiltração de heras entre as veias,
nunca adulto para compreender.

Não há nada de natural na morte natural.
Divorciar-se do corpo, tremer ao segurar
as pernas, acomodar-se no finito
de uma cama e deitar com o tumulto
que vem de um túmulo vazio.



Fabrício Carpinejar
in Biografia de uma árvore

Décima elegia

Só na velhice o vento não ressuscita.
A água dos olhos entra na surdez da neve
e escuta a oração do estômago, dos rins, do pulmão.

O sono desce com a marcha dos ratos no assoalho.
Tudo foi julgado e devemos durar nas escolhas.

Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia.
O exílio é na carne.

Esmorece o esforço de conciliar a verdade
com a realidade.
A neblina nos enterra vivos.

Só na velhice o pó atravessa a parede da brasa,
o riso atravessa o osso.
Deciframos a descendência do vinho.

Os segredos não são contados
porque ninguém quer ouvi-los.
O lume raso do aposento é apanhado pela ave
a pousar o bule das penas na estante do mar.

Só na velhice acomodo a bagagem nos bolsos do casaco.
O suspiro é mais audível que o clamor.

Recusamos o excesso, basta uma escova e uma toalha.

Só na velhice os músculos são armas engatilhadas.
O nome passa a me carregar.

É penoso subir os andares da voz,
nos abrigamos no térreo de um assobio.
Pedimos desculpa às cadeiras e licença ao pão.

O ódio esquece sua vingança.
Amamos o que não temos.

Só na velhice digo bom-dia e recebo
a resposta de noite.
Convém dispor da cautela e se despedir aos poucos.

Só na velhice quantos sofrem à toa
para narrar em detalhes seu sofrimento.

O pesadelo impõe dois turnos de trabalho.
Investigo-me a ponto de ser meu inimigo.

Sustentamos o atrito com o céu, plagiando
com as pálpebras o vôo anzolado, céreo, das borboletas.

Só na velhice há o receio em folhear edições raras
e rasgar uma página gasta do manuseio.
Embalo a espuma como um neto.

Confundimos a ordem do sinal da cruz.
O luto não é trégua e descanso, mas a pior luta.

Só na velhice a forma está na força do sopro.
Respeito Lázaro, que a custo de um milagre
faleceu duas vezes.

O medo é de dormir na luz.
Lamento ter sido indiscreto
com minha dor e discreto com minha alegria.

Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.

Envelheci,
tenho muita infância pela frente.


Fabrício Carpinejar
in Terceira Sede

Fragmento I

Pouco crescemos
no que aprendemos,
o sabor

de um livro antigo
está em jovem
esquecê-lo.

Eu alterei
a ordem do teu ódio.
Fiz fretes de obras

na estante.
Mudava os títulos
de endereços

em tua biblioteca
e rastreavas, ensandecido,
aquele morto encadernado

que ressuscitou
quando havias enterrado
a leitura,

aquele coração insistente,
deixando atrás uma cova
aberta na coleção.

Sou também um livro
que levantou
dos teus olhos deitados.

Em tudo o que riscavas,
queria um testamento.
Assim recolhia os insetos

de tua matança,
o alfabeto abatido
nas margens.

Folheava os textos,
contornando as pedras
de tuas anotações.

Retraído,
como um arquipélago
nas fronteiras azuis.

Desnorteado,
como um cão
entre a velocidade

e os carros.
Descia o barranco úmido
de tua letra,

premeditando
os tropeços.
Sublinhavas de caneta,

visceral,
impaciente com o orvalho,
a fúria em devorar as idéias,

cortar as linhas em estacas da cruz,
marcá-las com a estada.
Tua pontuação delgada,

um oceano
na fruta branca.
Pretendias impressionar

o futuro com a precocidade.
A mãe remava
em tua devastação,

percorria os parágrafos a lápis.
O grafite dela, fino,
uma agulha cerzindo

a moldura marfim.
Calma e cordata,
sentava no meio-fio da tinta,

descansando a fogueira
das folhas e grilos.
Cheguei tarde

para a ceia.
Preparava o jantar
com as sobras do almoço.

Lia o que lias,
lia o que a mãe lia.
Era o último a sair da luz.


Fabrício Carpinejar
in Um Terno de Pássaros ao Sul


Reserva de chuvas

Na escola, zombaram de minha pronúncia torta,
ameaçaram-me com canivetes no recreio.
Assisti a covardia crescer, aquietado no fundo da sala.
Durante anos, contive o veludo áspero da pata,
a soleira da pata, a vogal da pata.
Preparei a vingança pelas palavras.

Roubei o dízimo, enrolei o papel seda
dos versículos para fumar tuas promessas.
Pisei em teu rosto com a luz suja de um livro.
A neblina me perseguiu enfurecida
e não viu que estava nela.

Peço desculpas como uma criança,
as mãos algemadas
na inocência nociva.

Como enganar os gestos?
Minha vontade de abraçar
esgana.

Todos meus erros descendem do excesso,
não da penúria.

Deus, será que tua água
vem da sede do homem?
Será que nossa sede é potável?

As diferenças nos assemelham,
o único vizinho do mar é o abismo.
Estou extremamente perto
e morro distante.
Mora numa morte emprestada.

Cerca-me da cegueira,
tal relâmpago que acende o bosque
para as aves pousarem nele.

Cerca-me da cegueira,
desapegando do que não vi.

Cerca-me da cegueira,
a fidelidade do vento é testada no naufrágio.

Cerca-me da cegueira,
como uma fruta apanhada com os dentes.

Cega-me.
Meu desespero fracassou
ao passar a noite em claro.
Fez amizade com as sombras.



Fabrício Carpinejar
O poema acima foi extraído do livro "Biografia de uma árvore", Escrituras Editora - São Paulo, 2002, pág. 57.



É o escândalo da verdade. Tímidos se transformam em terroristas, calmos ficam enervados, pacientes se portam como histéricos. Por um instante, não há medo de fazer as propostas mais desvairadas, confessar palavras reprimidas, estender os olhos como um lençol limpo.

O fim é lindo. Do crepúsculo, de uma vela, de uma chuva. O fim é esperançoso, exigente. Pancadas de beleza. O som e o sol pulam como um suicida ao avesso para dentro da vida.



Fabrício Carpinejar
O poema acima foi extraído do livro "Canalha!", Ed. Bertrand Brasil - Rio de Janeiro, 2008, pág. 314.

Q U E R O

Quero a festa
da tua festa
inundando
a minh alma !


Quero
dançar contigo
a quinta Sinfonia!
Num terreiro do Tejo!
numa praia da Bahía!

Pairar nessa atmosfera
de sonho e alegria!

Respirar
o teu cheiro!

Arrepiar
no teu toque!

Quero
o Canto-Encanto
da Tua Magia

Quero
Meu Amor,

o teu Amor Inteiro



luizacaetano

"VAZIO REDONDO"

Há um vazio redondo
que fere o silêncio e os gritos
como escarpas estilhaçadas ...

Há um abismo redondo
na poeira dos meus passos
um precipício de mêdo
tecido na rotina dos dias...

Há um esgar de ausência
em cada noite encostado
como se esperasse
um pássaro por amanhecer...

Um cansaço de acuçenas
amarelecidas pelo tempo
sangrando as esperas na arena,

as Primaveras, subitamente feridas,
se extinguem num vazio redondo
como um grito contra o muro.



luizacaetano
(do livro Lisboa In Versos)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

VIDA

Palavras, antes esquecê-las
lambendo todo o sal do mar
uma única pedra.

(do livro 100 hai-kais, 1986)

Olga Savary

PÁSSARO

A noite não é tua
mas nos dias
—curtos demais para o vôo —
amadureces como um fruto.
Tuas asas seguem as estações.
É tua a curvatura da terra.
Pássaro, metáfora de poeta.

(do livro Sumidouro, 1977)


Olga Savary

NOME

Tu, em tudo presença,
vibrar de asa,


eu, que nem nome tenho,
jamais nua de água,


tu, felicidade do corpo
embasado em brasa,


eu, sequer lembrança,
mero eco na sala,


tu, veneno curare
— e eu é que me chamo naja?

(do livro Éden Hades, 1994)


Olga Savary

OUTRA CENA

Sentada estavas quando ele entrou
seguido de uma princesa ou uma serpente.
Só sabes que teu rosto não mudou
mas em turvo mudou-se o transparente
riso de antes, pesados os gestos.
Viraste uma mulher que acordada
e de frente vê um sonho mau
se sonho e distante já nem sente
e que já não amando é como se amasse
e, perdido o amor, é como se o tecesse.

(do livro Éden Hades, 1994)


Olga Savary

UMA CENA

Vês acordada como em sonho
o sonho mau tal fosse belo
— o belo horror do real
que nem consciência nítida
ou lúcida, clara, exata,
não como é visto sol a pino
ou através da água,
como quem vê dentro do mar
ou através de um vidro fosco,
mais, no fundo de um espelho,
não o que mostra a imagem
mas aquele que a deforma
inteiro fora de foco.



Olga Savary

LIMITE

Ausente e lassa, queria
estar pisando
a areia fina de Arraial do Cabo,
a areia grossa de Amaralina,
em Goiás Velho urdir a tarde
com Bernardo Elis e Cora Coralina,
farejar
cheiro de candeia por toda Ouro Preto...
mas estou presa à molduras de todos os meus retratos.

Goiás Velho
maio 1972


Olga Savary

MAPA DE ESPERANÇA

Vinha pisando sobre toda a praia,
o sangue quieto — ou quase quieto —,
os pensamentos leves como espumas
e os cabelos soltos como nuvens.

Trágica como princesa de elegia,
meu estandarte é o desespero,
minha bandeira, indecisão.

Ainda assim, alegria, te festejo.

Arraial do Cabo
1971


Olga Savary