terça-feira, 29 de novembro de 2011

VIÉS

Ó lua, fragmento de terra na diáspora,
desejável deserto, lua seca.
Nunca me confessei às coisas,
tão melhor do que elas me julgavam.
Hoje, por preposto de Deus escolho-te,
clarão indireto, luz que não cintila.
Quero misericórdia e
por nenhum romantismo sou movida.

 Adélia Prado

TEOLOGAL

Agora é definitivo:
uma rosa é mais que uma rosa.
Não há como deserdá-la
de seu destino arquetípico.
Poetas que vão nascer
passarão à forma prima:
a rosa é mística.

Adélia Prado
In Oráculo de Maio

"BREVE PENSAMENTO"

Existe no silêncio
um grito de harpas
desamparadas
como se viúvas
da música das palavras.

Porém não chores
a eternidade aprende-se
escutando o vento.

LuizaCaetano
Dezembro de 2009

"TORPOR"

Neste íntimo torpor
em que tudo parece ser,
a vida se esbate
num fingimento de existir

Tudo de belo á nossa volta
é poalha de sonho ou ilusão

esboço de promessas
como ecos mudos
que vão e que voltam

em meio de um silencioso abismo

Enquanto os teus lábios
cerzidos na distãncia

são escarpas laminadas
na minha saudade

LuizaCaetano
2010/06

"O ADEUS"

Tuas mãos sobre as minhas
e as lágrimas
dum Adeus anunciado,

Apenas um orvalho
carimbado na despedida

Morre-se devagar
engulindo o choro e a dor

Adeus! Adeus Meu Amor

LuizaCaetano 06/ 2010

"A PONTE"


Me vesti de ti
e de ti me perfumei
te percorri em regressos,
partidas e lembranças
por todos os corredores
portos e navios.

Tão pouco te vivi!
tanto que te sonhei!

Me vesti de ti
do teu químico odor me enebriei
entre pontes e pontes
em ti me suicidei

E as rosas? As rosas
que pétala-a-pétala desfolhei
em poesias, heresias ou emoções,

com elas bordei a ponte da fonte das ilusões.

2010/LuizaCaetano
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O fado nos dispõe , e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Fernando Pessoa
In Odes de Ricardo Reis

INTERVALO

Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

Fernando Pessoa
In Cancioneiro

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Ao inferno, senhores , ao inferno dos homens,
Lá onde não fogueiras, mas desertos.
Vinde todos comigo, irmãos ou inimigos,
A ver se povoamos esta ausência
Chamada solidão.
E tu, claro amor, palavra nova,
Que a tua mão não deixe a minha mão.

José Saramago
In Provavelmente Alegria

O BEIJO

Hoje, não sei porquê, o vento teve um grande gesto
de renúncia , e as árvores aceitaram a imobilidade.
No entanto ( e é bem que assim seja) uma viola
organiza obstinadamente o espaço da solidão.
Ficamos sabendo que as flores se alimentam na fértil
humidade.
É essa a verdade da saliva.

José Saramago
In Provavelmente Alegria

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Com pesos dúvidos me sujeito à
balança até hoje recusada
de saber o que mais vale:
Se julgar, assistir ou ser julgado.
Ponho no prato raso quanto sou.

José Saramago
Costuma-se dizer que as paredes
têm ouvidos, imagine-se o tamanho
que terão as orelhas das estrelas."

José Saramago
De que adianta falar de motivos,
às vezes basta um só, às vezes
nem juntando todos

José Saramago
Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.

José Saramago
Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.

José Saramago

Não me Peçam Razões...

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago
Mesmo que a rota da minha vida
me conduza a uma estrela, nem
por isso fui dispensado de percorrer
os caminhos do mundo.

José Saramago
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

José Saramago
Fisicamente, habitamos um espaço,
mas, sentimentalmente, somos
habitados por uma memória.

José Saramago

Não tenhamos pressa,
mas não percamos tempo.

José Saramago
"Dirão, em som, as coisas que,
calados,no silêncio dos olhos
confessamos?"

José Saramago
Não sou um ateu total, todos os
dias tento encontrar um sinal de
Deus,
mas infelizmente não o encontro.

José Saramago
Os lugares-comuns, as frases feitas,
os bordões, os narizes-de-cera, as
sentenças de almanaque, os rifões
e provébios, tudo pode aparecer
como novidade, a questão está
só em saber manejar adequadamente
as palavras que estejam antes e depois.

José Saramago
Cada dia traz sua alegria e sua pena,
e também sua lição proveitosa

José Saramago
Há ocasiões que é mil vezes preferível
fazer de menos que fazer de mais,
entrega-se o assunto ao governamento
da sensibilidade, ela, melhor que a
inteligência racional, saberá proceder
segundo o que mais convenha à
perfeição dos instantes seguintes.

José Saramago
O talento ou acaso não escolhem,
para manisfestar-se, nem dias nem lugares.

José Saramago

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Poema à boca fechada


Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago
Sempre chega a hora em que
descobrimos que sabíamos
muito mais do que antes
julgávamos.

José Saramago
A virtude, quem o ignorará ainda,
sempre encontra escolhos no
duríssimo caminho da perfeição,
mas o pecado e o vício são tão
favorecidos da fortuna que foi
ela chegar e abrirem-se-lhe as
portas do elevador.

José Saramago

O espelho e os sonhos são coisas semelhantes,
é como a imagem do homem diante de si próprio.

José Saramago
Quem acredita levianamente
tem um coração leviano.

José Saramago
O que as vitórias têm de mau
é que não são definitivas.
O que as derrotas têm de
bom é que também não
são definitivas.

José Saramago
Quem tu és não importa, nem conheces
O sonho em que nasceu a tua face:
Cristal vazio e mudo.
Do sangue de Quixote te alimentas,
Da alma que nele morre é que recebes
A força de seres tudo.

José Saramago
Espaço Curvo e Finito

Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças
E ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe,
Um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

José Saramago
Todos sabemos que cada dia que
nasce é o primeiro para uns e será
o último para outros e que, para a
maioria, é so um dia mais.

José Saramago
Para temperamentos nostálgicos,
em geral quebradiços, pouco
flexíveis, viver sozinho é um
duríssimo castigo

José Saramago
Os bons e os maus resultados dos nossos ditos
e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de
uma maneira bastante uniforme e equilibrada,
por todos os dias do futuro, incluindo aqueles,
infindáveis, em que já cá não estaremos para
poder comprová-lo, para congratularmo-nos
ou para pedir perdão, aliás, há quem diga que
é isto a imortalidade de que tanto se fala.

José Saramago
Gostar é provavelmente a melhor
maneira de ter, ter deve ser a
pior maneira de gostar.

José Saramago

José Saramago

“Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir;
Quando a noite é de mais é que amanhece

A cor de primavera que há-de vir.”




Entardecer

Um marco de melancolia
na aridez das escarpas,
debruçadas no ocidente
e um marulhar de lembranças
nos grotões da saudade.

Helena Kolody
EXILADOS

Ensimesmados,
olham a vida
como exilados
fitando o mar.
Não estão no mundo
como quem o habita.
Estão de visita
num planeta estranho.

HELENA KOLODY
CANTIGA DE RODA'


Ao som de ingênua cantiga,
Gira, ligeira, uma roda.

Bailam cabelos de linho,
Brilha a cantiga nos olhos,
Saltam, leves, os pezinhos.

Os grandes cedros antigos,
Também, se põem a bailar:
Cantam os ramos no ar,
Dançam as sombras no chão.


Helena Kolody
EVOLUÇÃO
Caem as folhas de repente,
brotam outras pelos ramos,
murcham flores, surgem pomos
e a planta volta à semente.

Assim somos. Sutilmente,
diferimos do que fomos.

Impossível transmitir,
por secreto e singular,
o acrescentar e perder
desse crescer que é mudar

(HELENA KOLODY in Viagem no Espelho)
Nunca e Sempre

Sempre cheguei tarde
ou cedo demais.
Não vi a felicidade acontecer.
Nunca floresceram
em minha primavera
as rosas que sonhei colher.

Mas sempre os passarinhos
cantaram e fizeram ninhos
pelos beirais
do meu viver.

(Helena Kolody)
Fim de Jornada

Caminhar ao encontro da noite.
Como o camponês regressa ao lar.
Após um longo dia de verão.
Sem pressa ou cuidado.
Na tarde ouro e cinza.
Sozinho entre os campos lavrados.
E as colinas distantes.
Caminhar, ao encontro da noite.
Sem pressa ou cuidado.
A noite é somente uma pausa de sombra.
Entre um dia e outro dia.

(Helena Kolody)
Helena Kolody nasceu em 1912, em Cruz Machado, Paraná, no dia 12 de outubro. Filha de Miguel e Vitória Kolody, passou a infância na cidade catarinense de Três Barras. Em 1926, concluiu o curso de guarda-livro e, no ano seguinte, mudou-se com a família para Curitiba, onde residiu até sua morte. Em 1928, publica seu primeiro poema, "A lágrima". Em 1931, conclui o curso da Escola Normal Secundária. No ano seguinte iniciou uma brilhante carreira no magistério, paixão que só dividiria com a poesia. Em 1941 publicou a primeira obra, "Paisagem interior", que seria seguida por outros treze títulos. Já nesta obra de estréia constavam três haikais, algo raro à época. Estava presente em seu projeto poético esta busca, como disse mais tarde, "da síntese para traduzir o pensamento". Em 2001, foi publicado o livro "Viagem no Espelho e vinte e um poemas inéditos", pela Criar Edições, de Curitiba, Paraná (PR). Essa edição comemorou os 60 anos da publicação de seu primeiro livro.

A poeta morreu em 15 de fevereiro de 2004.
Bate a luz no cimo...

Bate a luz no cimo
Da montanha, vê...
Sem querer eu cismo
Mas não sei em quê....

Não sei que perdi
Ou que não achei...
Vida que vivi,
Que mal eu a amei !...

Hoje quero tanto
Que o não posso ter,
De manhã há o pranto
E ao anoitecer...

Tomara eu ter jeito
Para ser feliz...
Como o mundo é estreito,
E o pouco que eu quis !

Vai morrendo a luz
No alto da montanha...
Como um rio a flux
A minha alma banha,

Mas não me acarinha,
Não me acalma nada...
Pobre criancinha
Perdida na estrada !...



Fernando Pessoa
Baladas de uma outra terra

Baladas de uma outra terra, aliadas
Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
Retinem lívidas ainda aos ouvidos
Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canais barcas erradas
Segredam-se rumos descridos...

E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,
As fadas são belas e as estrelas
São delas... Ei-las alheadas...

E sao fumos os rumos das barcas sonhadas,
Nos canais fatais iguais de erradas,
As barcas parcas das fadas,
Das fadas aladas e hiemais
E caladas... Toadas afastadas, irreais, de baladas... Ais...



Fernando Pessoa
Azul ou verde ou roxo

Azul, ou verde, ou roxo quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero (?), casual (?) ou mol(e),
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.

Só o mar às vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar. Mas sonho...

O mar é água, é água nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
Que uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o, vasante, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma ? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
O sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres - todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia
Acaso vos chamou de igonotas flautas
A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar
Sereias só de ouvir e não de achar?

Quem atrás de intérminos oceanos
Vos chamou à distância ou quem
Sabe que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural de bem
Mas, mais vaga, mais sutil também
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é e se vós e o mar imenso
Sois qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar
Fazei-me livre, enfim , de o ignorar.


 Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao longe o nosso coração,
Fazei-me ouvir , como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português que fala o mar!

Fernando Pessoa
Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as dores que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.



Fernando Pessoa
Atravessa esta paisagem o meu sonho

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

Fernando Pessoa
Às vezes entre a tormenta

Às vezes entre a tormenta,
quando já umedeceu,
raia uma nesga no céu,
com que a alma se alimenta.

E às vezes entre o torpor
que não é tormenta da alma,
raia uma espécie de calma
que não conhece o langor.

E, quer num quer noutro caso,
como o mal feito está feito,
restam os versos que deito,
vinho no copo do acaso.

Porque verdadeiramente
sentir é tão complicado
que só andando enganado
é que se crê que se sente.

Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.

Fernando Pessoa
As tuas mãos terminam em segredo

As tuas mãos terminam em segredo.
Os teus olhos são negros e macios
Cristo na cruz os teus seios (?) esguios
E o teu perfil princesas no degredo...

Entre buxos e ao pé de bancos frios
Nas entrevistas alamedas, quedo
O vendo põe o seu arrastado medo
Saudoso o longes velas de navios.

Mas quando o mar subir na praia e for
Arrasar os castelos que na areia
As crianças deixaram, meu amor,

Será o haver cais num mar distante...
Pobre do rei pai das princesas feias
No seu castelo à rosa do Levante !

Fernando Pessoa
Assim, sem nada feito e o por fazer

Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.

Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.

Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.

Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.

Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!

Fernando Pessoa
As minhas Ansiedades

As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.
Na Múmia a posição é absolutamente exata.

Música longínqua,
Música excessivamente longínqua,
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.

Fernando Pessoa
As horas pela alameda

As horas pela alameda
Arrastam vestes de seda,

Vestes de seda sonhada
Pela alameda alongada

Sob o azular do luar...
E ouve-se no ar a expirar -

A expirar mas nunca expira -
Uma flauta que delira,

Que é mais a idéia de ouvi-la
Que ouvi-la quase tranqüila

Pelo ar a ondear e a ir...
Silêncio a tremeluzir...

Fernando Pessoa
Aqui onde se espera

Aqui onde se espera
- Sossego, só sossego -
Isso que outrora era,
Aqui onde, dormindo,
-Sossego, só sossego-
Se sente a noite vindo,

E nada importaria
-Sossego, só sossego-
Que fosse antes o dia,

qui, aqui estarei
-Sossego, só sossego -
Como no exílio um rei,

Gozando da ventura
- Sossego, só sossego -
De não ter a amargura

De reinar, mas guardando
- Sossego, só sossego -
O nome venerando...

Que mais quer quem descansa
- Sossego, só sossego -
Da dor e da esperança,

Que ter a negação
- Sossego, só sossego -
De todo o coração ?

Fernando Pessoa
Ao longe, ao luar

Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fernando Pessoa
Andei léguas de sombra

Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-se as lâmpadas
Na alcova cambaleante.
Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tato
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista.
Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.

Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical. A alcova
Desce não se por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.

E o deserto está agora
Virado para baixo.

A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.

Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.

Fernando Pessoa
A morte chega cedo

A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.
O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.

Fernando Pessoa
A minha vida é um barco abandonado

A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.

Fernando Pessoa
A Grande Esfinge do Egito

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops ...
De repente paro...
Escureceu tudo...

Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim! ...

Fernando Pessoa
Abismo

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é sério, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.

Fernando Pessoa
Abdicação

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

Fernando Pessoa
Abat-Jour

A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza
Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.

Bem sei ... Era dia
E longe de aqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!

E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...

Fernando Pessoa
Cronologia

1888: Em Junho nasce Fernando António Nogueira Pessoa; em Julho ocorre seu baptismo.
1893: Em Janeiro nasce seu irmão Jorge. O pai morre de tuberculose em 13 de Julho. A família é obrigada a leiloar parte de seus bens.
1894: No mês de Janeiro, seu irmão Jorge morre. Cria seu primeiro heterônimo. João Miguel Rosa é nomeado cônsul interino em Durban.
1895: Escreve o seu primeiro poema em Julho. A mãe casa com o comandante João Miguel Rosa em 30 de Dezembro.
1896: Parte com a mãe e um tio-avô para Durban no início de Janeiro. Nasce Henriqueta Madalena, irmã do poeta.
1897: Faz o curso primário em West Street. No mesmo instituto, faz a primeira comunhão.
1898: Nasce, em Outubro, sua segunda irmã, Madalena Henriqueta.
1899: Ingressa na Durban High School. Cria o pseudónimo Alexander Search.
1900: Em Janeiro, nasce o 3ª filho do casal, Luís Miguel. Em Junho, Pessoa passa para a Form III e é premiado em Francês
1901: É aprovado no seu primeiro exame em Junho. Escreve os primeiros poemas em inglês. Parte com a família para Portugal em Agosto. Falece Madalena Henriqueta.
1902: A família retorna à Lisboa em Junho. Nascimento do irmão João Rosa. Em Setembro, Pessoa volta para a África. Tenta escrever romances em inglês.
1903: Submete-se ao exame de admissão à Universidade do Cabo, tirando a melhor nota no ensaio de estilo inglês.
1904: Termina seus estudos na África do Sul.
1905: Vai de vez para Lisboa, onde passa a viver com uma tia. Continua a escrever poemas em inglês.
1906: Matricula-se no Curso Superior de Letras. A mãe e o padrasto retornam à Lisboa e Pessoa volta a morar com eles.
1907: A família retorna mais uma vez a Durban. Pessoa passa a morar com a avó. Desiste do Curso de Letras. Em Agosto a avó morre.

 1908: Começa a trabalhar como correspondente estrangeiro em escritórios comerciais.
1910: Escreve poesia e prosa em português, inglês e francês.
1912: Pessoa estréia como crítico literário, provocando polêmicas junto à intelectualidade portuguesa.
1913: Intensa produção literária. Escreve O Marinheiro.
1914: Cria os heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Escreve os poemas de O Guardador de Rebanhos e também Livro do Desassossego.
1915: Sai em março o primeiro número de Orpheu. Pessoa “mata” Alberto Caeiro.
1916: Seu amigo Mário de Sá-Carneiro suicida-se.
1918: Pessoa publica poemas em inglês, resenhados com destaque no “Times”.
1920: Conhece Ophélia Queiroz. Sua mãe e seus irmãos voltam para Portugal. Em outubro, atravessa uma grande depressão, que o leva a pensar em internar-se numa casa de saúde. Rompe com Ophélia.
1921: Funda a editora Olisipo, onde publica poemas em inglês.
1924: Aparece a revista “Atena”, dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz.
1925: Morre em Lisboa a mãe do poeta, em 17 de Março.
1926: Dirige com seu cunhado a “Revista de Comércio e Contabilidade”. Requer patente de uma invenção sua.
1927: Passa a colaborar com a revista “Presença”.
1929: Volta a se relacionar com Ophélia.
1931: Rompe novamente com Ophélia.
1934: Publica Mensagem.
1935: Em 29 de Novembro, é internado com o diagnóstico de cólica hepática. Morre no dia 30.
Pessoa por Pessoa


"Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho
e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias
e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como
quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado."
(Alberto Caeiro - trecho do primeiro poema do Guardador de Rebanhos)



Fernando António Nogueira Pessoa

Fernando Pessoa

Nota Autobiográfica


Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa.

Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888.

Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto e que foi Director-Geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto de fidalgos e judeus.

Estado: Solteiro.

Profissão: A designação mais própria será «tradutor», a mais exacta a de «correspondente estrangeiro em casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.

Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos públicos, ou funções de destaque, nenhumas.

Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte: «35 Sonnets» (em inglês), 1918; «English Poems I-II» e «English Poems III» (em inglês também), 1922, e o livro «Mensagem», 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria «Poema». O folheto «O Interregno», publicado em 1928, e constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito.


Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dto. Lisboa. (Endereço postal - Caixa Postal 147, Lisboa).

 Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prémio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.

Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.

Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.

 Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.

Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».

Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.

Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania.

Lisboa, 30 de Março de 1935 [no original 1933, por aparente lapso]